segunda-feira, 28 de maio de 2012

O homem de La Mancha

Poemas de Carlos Drummond de Andrade  Jorge Luis Borges


Drummond

 

                                  (trechos)

I / SONETO DA LOUCURA

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto em meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.


IV / CONVITE À GLÓRIA

— Juntos na poeira das encruzilhadas conquistaremos a glória.
— E de que me serve?

— Nossos nomes ressoarão nos sinos
de bronze da História.
— E de que me serve?

— Jamais alguém, nas cinco partidas do mundo,
será tão grande.
— E de que me serve?

— As mais inacessíveis princesas se curvarão
à nossa passagem.
— E de que me serve?

— Pelo teu valor e pelo teu fervor
terás uma ilha de ouro e esmeralda.
— Isto me serve.


XI / DISQUISIÇÃO NA INSÔNIA

Que é loucura: ser cavaleiro andante
          ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
          O que, mesmo vendado,
          vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou — que doideira — um louco de juízo.


XXI / ANTEFINAL NOTURNO

Dorme, Alonso Quejana.
Pelejaste mais do que a peleja
(e perdeste).
Amaste mais do que amor se deixa amar.
O ímpeto
o relento
a desmesura
fábulas que davam rumo ao sem-rumo
de tua vida levada a tapa
e a coice d'armas,
de que valeu o tudo desse nada?
Vilões discutem e brigam de braço
enquanto dormes.
Neutras estátuas de alimárias velam
a areia escura de teu sono
despido de todo encantamento.
            Dorme, Alonso, andante
            petrificado
            cavaleiro-desengano.

 

 Borges

SONHA ALONSO QUIJANO

                          Tradução: Josely Vianna Baptista

Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.


SUEÑA ALONSO QUIJANO

El hombre se despierta de un incierto
Sueño de alfanjes y de campo llano
Y se toca la barba con la mano
Y se pregunta si está herido o muerto.
¿No lo perseguirán los hechiceros
que han jurado su mal bajo la luna?
Nada. Apenas el frío. Apenas una
Dolencia de sus años postrimeros.
El hidalgo fue un sueño de Cervantes
Y don Quijote un sueño del hidalgo.
El doble sueño los confunde y algo
está pasnado que pasó mucho antes.
Quijano duerme y sueña. Una batalla:
Los mares de Lepanto y la metralla.
 

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